Comemora-se este ano e no prximo, o centenrio da descoberta da doena de Chagas. Coincidentemente, em 2008 comemora-se tambm o centenrio de nascimento de Emmanuel Dias, que teve um papel dos mais relevantes na histria da doena de Chagas.

            Emmanuel Dias nasceu no Rio de Janeiro em 27 de julho de 1908. Era filho de Ezequiel Dias, um dos colaboradores diretos de Oswaldo Cruz e que fora por este incumbido de instalar e dirigir uma filial do Instituto de Manguinhos em Belo Horizonte. Por esta razo, a infncia de Emmanuel Dias transcorreu na capital mineira, onde ele residiu at os 14 anos de idade, quando ficou rfo de pai e sua famlia retornou ao Rio de Janeiro. Emmanuel Dias era sobrinho da esposa de Oswaldo Cruz e afilhado de batismo de Carlos Chagas; sua filiao e estas circunstncias traaram o seu destino de mdico, pesquisador e continuador da obra de Carlos Chagas.

            Em 1927 matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo o curso mdico em 1932. Ainda como aluno do segundo ano foi admitido como estagirio voluntrio do Instituto Oswaldo Cruz, onde conviveu com os grandes mestres e pesquisadores que ali trabalhavam e que o incentivaram a dedicar-se ao estudo da doena de Chagas. Uma srie de artigos que publicou entre 1932 e 1937 sobre a doena de Chagas na prestigiosa revista francesa Comptes Rendus de la Socit de Biologie et de ses filiales demonstram, j nessa poca, a extenso e profundidade de seus conhecimentos sobre o assunto.

            Em 1933 defendeu tese de doutoramento sobre a morfologia e ciclo biolgico do Schizotrypanum cruzi e, a seguir, prestou concurso e foi aprovado para ocupar o cargo de biologista do Instituto Oswaldo Cruz. Nos primeiros anos em sua nova posio, desenvolveu suas atividades junto a Evandro Chagas no Servio de Grandes Endemias.

            Em 1935, juntamente com Evandro Chagas, representou o Brasil na IX Reunio da MEPRA (Misin de Estudios de Patologa Regional Argentina) sobre doena de Chagas, organizada por Salvador Mazza na cidade de Mendoza, na Argentina, em homenagem a Carlos Chagas, que havia falecido no ano anterior.

            Nessa reunio, Ceclio Romaa, colaborador de Mazza, relatou suas observaes sobre o sinal de penetrao do Trypanosoma cruzi atravs da conjuntiva ocular, caracterizado por edema bipalpebral unilateral, conjuntivite, dacriadenite e aumento ganglionar pr-auricular.

            Dias percebeu a importncia clnica e epidemiolgica deste sinal e, juntamente com Evandro Chagas, propuseram para o mesmo o epnimo de "Sinal de Romaa", pelo qual ficou conhecido. Este fato provocou cimes em Salvador Mazza, que contestou o valor e a especificidade do sinal e motivou a vinda de Romaa para o Brasil, onde continuou suas pesquisas sobre a tripansomase no Instituto Oswaldo Cruz.

            Dias difundiu o sinal de Romaa no Brasil entre os mdicos do interior, facilitando o reconhecimento de maior nmero de casos agudos e a localizao de reas de mais alta endemicidade.

            Em 1943, Henrique Arago, ento Diretor do Instituto Oswaldo Cruz, decidiu criar um posto avanado para estudo da doena de Chagas, denominado "Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de Chagas". O local escolhido foi o municpio de Bambu, reconhecida regio endmica no estado de Minas Gerais, e, para a sua direo, foi nomeado Emmanuel Dias.

            Inicia-se, ento, uma nova fase na vida de Emmanuel Dias. Bambu ser o laboratrio para seus estudos de epidemiologia, da biologia do parasito e do vetor e, sobretudo, da histria natural e das manifestaes clnicas da doena de Chagas nas suas fases aguda e crnica.

            Para os estudos clnicos, Dias passou a contar com a colaborao de dois eminentes pesquisadores: Francisco Laranja e Genard Nbrega. Os clssicos trabalhos publicados pelos trs permitiram a individualizao da cardiopatia chagsica crnica e a sua aceitao definitiva, tanto no Brasil como no exterior, como entidade nosolgica diversa das demais cardiopatias.

            As investigaes de Emmanuel Dias e sua atuao, centradas na doena de Chagas, abrangem praticamente todos os aspectos desta zoonose e surpreendem pela variedade de temas abordados e por suas contribuies originais. Sua produo cientfica, como autor e co-autor, ultrapassa uma centena de trabalhos publicados. Partiu dele a primeira advertncia sobre o risco da transmisso do parasito por transfuso de sangue, a confirmao da transmisso vetorial do T. cruzi atravs das fezes do "barbeiro" e no da saliva durante a suco de sangue, como acreditava Chagas, a comprovao, em animais, da transmisso do T. cruzi por via digestiva. Estudou a infeco experimental em vertebrados, a imunidade natural das aves ao parasito e foi pioneiro na utilizao do xenodiagnstico na doena de Chagas. As observaes, o acompanhamento e o registro sistemtico dos casos agudos e crnicos diagnosticados na rea de Bambu alcanaram a maior casustica na histria da doena de Chagas e permitiram conhecer melhor suas manifestaes clnicas e sua evoluo a longo prazo.

            Preocupou-se tambm com a debatida questo, na poca, da possvel etiologia chagsica do megaesfago e megaclon endmicos e, em 1948, so relatados os resultados da reao sorolgica para doena de Chagas em 81 casos de megaesfago com um ndice de positividade de 97% (Laranja FS, Dias E, Nbrega, G. Mem. Inst. Oswaldo Cruz 46:473-529, 1948).

            Paralelamente s suas atividades de pesquisa, Dias empenhava-se em um trabalho de educao sanitria da populao e em despertar o interesse e obter a colaborao dos mdicos de clnica privada, estabelecendo com os mesmos um intercmbio de informaes e oferecendo-lhes colaborao tcnica.

            Sob a direo de Emmanuel Dias, o Posto de Bambu foi o centro irradiador de um novo interesse pela doena de Chagas. Os estudos epidemiolgicos demonstraram a extenso e a gravidade da endemia, caracterizando-a como um problema de sade pblica a exigir providncias imediatas das autoridades sanitrias, no somente no Brasil, como em toda a Amrica latina.

            Nesse sentido, Dias colaborou com pesquisadores de outros pases, visando conhecer a situao da doena de Chagas em cada um deles. Em uma srie de artigos sob o ttulo geral de "Doena de Chagas nas Amricas", Dias relata dados epidemiolgicos e os vetores existentes em vrios pases latino-americanos, do Mxico ao Chile, tornando patente a dimenso continental da endemia e a necessidade da participao de organismos internacionais no seu combate.

            Sensibilizado pelo contato direto com as vtimas da enfermidade, Dias tornou-se o paladino da campanha de profilaxia da doena de Chagas. Enquanto se discutiam medidas para melhoria das habitaes, tornando-as imprprias domiciliao dos triatomneos, Dias, embora apoiasse medidas nesse sentido, defendia, como ao imediata, o combate direto aos triatomneos, alojados nas paredes das cafuas, com inseticidas de ao residual. Alguns ensaios neste sentido j haviam sido praticados na Venezuela, com vrios inseticidas e resultados promissores.

            Os primeiros testes em Bambu foram feitos com DDT, que se mostrou incuo para o T. cruzi. Em 1948, em colaborao com Jos Pellegrino, igualmente interessado na profilaxia da doena de Chagas, realizou com sucesso a primeira experincia com gamexane ou BHC (ismero gama do hexa-cloro-ciclohexano). O seu mtodo e a tcnica preconizada foram utilizados experimentalmente em reas limitadas, tanto no Brasil como na Argentina e no Chile, evidenciando sua exequibilidade e eficcia. A maior experincia foi adquirida em 1950, na regio de Uberaba, no Tringulo Mineiro, e em 1958, no Estado de So Paulo.

            Dias lutou em vrias frentes no sentido de mobilizar diferentes segmentos da sociedade e conscientizar as autoridades para a urgncia do combate doena de Chagas, uma vez que j se dispunha de um mtodo comprovadamente eficaz e de resultado imediato, que era a aplicao de inseticida de ao residual nas habitaes infestadas de triatomneos. Por razes de ordem poltica e econmica, entretanto, somente na dcada de 80 teve incio um programa de mbito nacional de desinsetizao das moradias das regies endmicas, como ele preconizava.

            Lamentavelmente, Emmanuel Dias no presenciou o auspicioso acontecimento. Sua vida foi bruscamente interrompida em um acidente rodovirio em 22 de outubro de 1962, quando contava 54 anos de idade.

            Um de seus ltimos pronunciamentos que revelam sua decepo com o descaso das autoridades em relao preveno da Doena de Chagas, se deu na Reunio de Debates promovida pelo Prof. Jos Rodrigues da Silva no Rio de Janeiro, de 19 a 21 de maro de 1962, cujos Anais encontram-se publicados na Rev. Goiana Med., vol.9,supl.,1963.

            So suas as seguintes palavras:

            "Em 1956 e princpio de 1957 fizemos uma campanha experimental de erradicao de "barbeiros", da qual resultou a eliminao praticamente total desses insetos do municpio de Bambu"... "H seis anos dei por terminada esta campanha experimental"...(p.234) "Assim, dever parecer absurda, a esta altura, a pergunta: Ser preciso ainda justificar campanhas contra o 'barbeiro'? De pouco valero profundos conhecimentos cientficos, falta da conscincia desta indisfarvel necessidade, falta de sensibilidade para esse problema humano"... "A doena de Chagas , antes de tudo, um problema de Sade Pblica."... (p.237)."A verdade que, doena silenciosa, a tripanosomose americana dizima as populaes mais obscuras, mais miserveis, mais infelizes, abandonadas e resignadas, cujo infortnio - diz o grande Carlos Chagas - implora a piedade dos homens e proclama a imprevidncia do Estado"(p.238).

            Dias foi diretor do Centro de Bambu desde a criao deste, em 1943, at o seu falecimento em 1962. Em reconhecimento aos seus muitos mritos e ao seu profcuo trabalho, o Centro recebeu em 1980 o nome de "Centro Avanado de Estudos Emmanuel Dias".

            Emmanuel Dias era casado com D. Ncia de Magalhes Pinto, de famlia tradicional em Minas Gerais, graduada em Filosofia da Histria, e, desse matrimnio, nasceram cinco filhos: Emmanuel, Eduardo, Joo Carlos, Ezequiel e Alosio.

            Joo Carlos Pinto Dias o continuador da obra de seu pai; pesquisador da Fundao Oswaldo Cruz, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Academia Mineira de Medicina e autor de numerosos trabalhos abrangendo diferentes reas relacionadas com a doena de Chagas.

            Por seu prestgio e atuao muito tem contribudo para tornar realidade o sonho de Emmanuel Dias, de interromper a transmisso vetorial da doena de Chagas pelo combate sistemtico aos triatomneos.

Goinia, 27/08/2008

Joffre M. de Rezende
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