DOS QUATRO HUMORES ÀS QUATRO BASES
Desde a antiguidade
e em várias civilizações, o número quatro tem
um simbolismo especial: o da plenitude, da totalidade, da abrangência,
da universalidade. Expressa, ao mesmo tempo, o concreto, o visível,
o aparente, o criado, ao contrário do número 3, que espelha
o transcendental, o espiritual, o abstrato, o divino. Nas palavras de Platão:
"O ternário é o número das idéias; o quaternário,
o da realização das idéias".
Esta concepção
parece radicar-se no inconsciente coletivo, porquanto o mesmo simbolismo
aparece também entre povos indígenas e tribos africanas
Os filósofos gregos
da escola pitagórica tinham imaginado o universo formado por quatro
elementos: terra, ar, fogo e água, dotados de quatro qualidades,
opostas aos pares: quente e frio, seco e úmido. A transposição
da estrutura quaternária universal para o campo da biologia deu
origem à concepção dos quatro humores do corpo humano.
O conceito de humor (khymós,
em grego), na escola hipocrática, era de uma substância existente
no organismo, necessária à manutenção da vida
e da saúde. Inicialmente, fala-se em número indeterminado
de humores. Posteriormente, verifica-se a tendência de simplificação,
reduzindo-se o número de humores para quatro, com seu simbolismo
totalizador. No livro Das doenças os humores são o
sangue, a fleuma, a bile amarela e a água. Na evolução
dos conceitos, a água, que já figurava como um dos componentes
do universo, é substituída pela bile negra. Admite-se que
a crença na existência de uma bile negra tenha sido fruto
da observação clínica nos casos de hematêmese,
melena e hemoglobinúria.
No tratado Da natureza
do homem, um dos mais tardios da coleção hipocrática,
atribuída a Polybos, genro de Hipócrates, a bile negra é
definitivamente incorporada como um dos quatro humores essenciais ao organismo.
Segundo a doutrina dos quatro
humores, o sangue é armazenado no fígado e levado ao coração,
onde se aquece, sendo considerado quente e úmido; a fleuma, que
compreende todas as secreções mucosas, provém do cérebro
e é fria e úmida por natureza; a bile amarela é secretada
pelo fígado e é quente e seca, enquanto a bile negra é
produzida no baço e no estômago e é de natureza fria
e seca.
A doutrina dos quatro humores
encaixava-se perfeitamente na concepção filosófica
da estrutura do universo. Estabeleceu-se uma correspondência entre
os quatro humores com os quatro elementos (terra, ar, fogo e água),
com as quatro qualidades (frio, quente, seco e úmido) e com as quatro
estações do ano (inverno, primavera, verão e outono).
O estado de saúde
dependeria da exata proporção e da perfeita mistura dos quatro
humores, que poderiam alterar-se por ação de causas externas
ou internas. O excesso ou deficiência de qualquer dos humores, assim
como o seu isolamento ou miscigenação inadequada, causariam
as doenças com o seu cortejo sintomático.
Segundo a concepção
hipocrática da patologia humoral, quando uma pessoa se encontra
enferma, há uma tendência natural para a cura; a natureza
(Physis) encontra meios de corrigir a desarmonia dos humores (discrasia),
restaurando o estado anterior de harmonia (eucrasia).
Este processo se realiza
em três etapas nas doenças agudas: apepsia, pepsia (cocção)
e crisis. A crisis tem tendência a ocorrer em dias
certos, o que levou Hipócrates a estudar os dias críticos
de várias enfermidades.
A recuperação
do enfermo acompanha-se da eliminação do humor excedente
ou alterado. O médico pode auxiliar as forças curativas da
Natureza, retirando do corpo o humor em excesso ou defeituoso, a fim de
restaurar o equilíbrio. Com esta finalidade, surgiram os quatro
principais métodos terapêuticos: sangria, purgativos, eméticos
e clisteres.
Galeno, no século
II DC, com o prestígio de sua autoridade, revitalizou a doutrina
humoral e ressaltou a importância dos quatro temperamentos, conforme
o predomínio de um dos quatro humores: sangüíneo, fleumático,
colérico (de cholé, bile) melancólico (de melános,
negro
+ cholé, bile). Colérico, portanto, é aquele
que tem mais bile amarela, e melancólico, o que tem mais bile negra.
Transfere-se, desse modo, para o comportamentos das pessoas, a noção
de equilíbrio e harmonia dos humores.
As expressões "bom
humor", "mau humor", "bem humorado", "mal humorado" são reminiscências
dos conceitos de eucrasia e discrasia.
A doutrina da patologia
humoral guiou a prática médica por mais de 2.000 anos e só
começou a perder terreno com a descoberta da estrutura celular dos
seres vivos graças ao desenvolvimento da microscopia. Os órgãos
e os tecidos deixaram de ser considerados como massas consistentes resultantes
da solidificação dos humores e passaram a ser vistos como
aglomerados de células individuais, adaptadas à natureza
e função de cada órgão.
Coube a Rudolf Virchow (1821-1902)
estabelecer as bases da nova patologia, fundamentada nas alterações
celulares causadas pelas doenças. A milenar doutrina da patologia
humoral foi substituída pela patologia celular, o que representou
um marco na evolução da teoria e da prática da medicina.
Ao mesmo tempo, o estudo
da embriologia e do processo de divisão celular levou à descoberta
das estruturas intracelulares, em especial do núcleo, dos cromossomas,
dos genes, e, finalmente, do DNA (ácido desoxirribonucléico),
substância primordial de todas as formas de vida, aquela que encerra
o código genético, define os caracteres hereditários
e assegura a continuidade das espécies.
A identificação
cristalográfica e química do DNA, que permitiu identificar
a sua estrutura helicoidal pode ser considerada um dos feitos mais notáveis
da pesquisa biológica.
Na complexidade e diversidade
das diferentes formas de vida, uma surpresa: o ressurgimento do número
quatro nas quatro bases que integram o DNA: adenina, timina, guanina e
citosina. Todos os seres vivos - animais, plantas, bactérias e muitos
vírus - são o resultado de diferentes sequenciamentos
e combinações dessas quatro bases na dupla hélice
do DNA. E as quatro bases, por sua vez, são formadas de quatro elementos
químicos: carbono, oxigênio, hidrogênio e nitrogênio.
No dizer do Prof. Spyros
Marketos, presidente da Fundação Internacional Hipocrática
de Cós, o modelo quaternário da escola hipocrática
mostrou-se compatível com as recentes descobertas da biologia molecular.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
30/08/2003