O CÓLERA, A CÓLERA
Conta-se que em uma reunião
sobre a recente epidemia de cólera, os seus participantes passaram
a maior parte do tempo discutindo se deviam dizer "o cólera" ou
"a cólera".
Se non è vero è ben trovato.
A palavra cólera,
em português, tanto exprime o sentimento de ira, raiva, fúria,
quanto designa a doença produzida pelo vibrião colérico.
Na primeira acepção a palavra é feminina; na segunda
o gênero tem sido motivo de interminável controvérsia.
Na primeira acepção,
a palavra cólera tem sua raiz etimológica no grego
kholé,
bile,
através do latim cholera, pois se acreditava, conforme
a doutrina da patologia humoral que norteou o pensamento médico
por mais de dois milênios, que o excesso de bile no organismo tornava
a pessoa de mau humor, irascível; donde os adjetivos colérico,
encolerizado e bilioso.
Na Ilíada, o grande
poema épico de Homero que narra a guerra de Tróia, já
se encontram referências ao vínculo entre a bile kholé
e
a cólera
orgé, no sentido de ira, como neste
trecho: "O filho de Peleu, transido de dor hesitou se.mataria o Átrida,
ou se acalmaria a sua bile e conteria a sua cólera" (Canto I), ou
nesta outra passagem: "Decerto que Aquiles não tem bile no coração,
ele deixa fazer de tudo" (Canto II). [1]
Este
conceito do papel patogênico da bile na alteração do
humor e no comportamento das pessoas, perdurou através dos séculos.
No conto Zadig, de Voltaire, para exemplificar, encontramos o seguinte
trecho: A bilis nos torna coléricos e doentes; mas, sem a bilis
não poderíamos viver. Tudo é perigoso neste mundo,
e tudo é necessário.
Embora a maioria dos léxicos
indique o mesmo étimo para cólera, no sentido de ira,
e cólera,
doença, o nome da doença aparentemente
não se vincula à bile. Três outros étimos têm
sido admitidos. São eles:
1. Do grego kholás,
ádos, intestinos.
[2]
2. Do grego kholédra,calha
para escoamento das águas. [3][4]
3. Do hebraico choli-ra,
doença terrível. [5]
É importante mencionar
que o termo cólera,
no
sentido de doença, já existia no grego clássico
e foi usado por Hipócrates para designar o estado mórbido
caracterizado por diarréia intensa, vômitos e desidratação.
Em sua obra EPIDEMIAS, livro V, encontramos a seguinte descrição:
"Em Atenas, um homem foi acometido de cólera; ele tanto vomitava
como evacuava; ele sofria; nem os vômitos nem as evacuações
podiam ser detidas; a voz estava débil; ele não podia sair
do leito; os olhos baços e escavados; ele tinha espasmos provenientes
do ventre e soluços; as evacuações alvinas eram muito
mais abundantes que os vômitos". [6] Observe-se
a caracterização das fezes como alvinas e não
amarelas
ou biliosas.
Celsus (25 a.C.-50d.C.),
o grande enciclopedista da medicina latina, também utilizou o termo
no mesmo sentido dado por Hipócrates, referindo-se à chamada
cholera
nostra, de aparecimento esporádico. [7]
A primeira descrição
da doença com carácter epidêmico, embora na maioria
das obras de referência seja atribuída a Garcia da Orta [8][9],
na verdade se deve a Gaspar Correia, em sua clássica obra Lendas
da India, e se refere à epidemia que grassou em Goa,
em 1543. Garcia da Orta certamente presenciara essa mesma epidemia, o que
lhe permitiu descrever um caso grave e os sintomas da doença a que
os nativos chamavam de morxie os colonos portugueses de
mordexi.
[10]
A denominação
de cólera asiático
se deve à epidemia que se
iniciou na Índia em 1814 e estendeu-se por toda a Europa com vários
surtos entre 1830 e 1879. [11] Sua natureza contagiosa
e transmissão pela água foi sugerida por Parkin, em 1832,
[12],
e demonstrada na Inglaterra por John Snow em 1849, [11]
antes, portanto, da descoberta do vibrião colérico por Koch
em 1884.
Em latim, que era a língua
utilizada em comunicações científicas até o
século XVIII, a doença de carácter epidêmico
era chamada cholera morbus, de que resultou cólera
morbo em português. Com a tendência natural de simplificação
da linguagem a doença passou a ser designada apenas por cólera,
sem o qualificativo morbo,
o qual, no entanto, permaneceu oculto
no gênero masculino, como sugerem Silveira Bueno [13]
e Cândido Jucá (filho).
[14]
O gênero da palavra
cólera,
doença, tem dividido as opiniões dos mais abalizados linguistas
e médicos. O mais intransigente defensor do gênero feminino
foi Cândido de Figueiredo, eminente lexicógrafo que se preocupou
com a terminologia médica.
Ao final do século
passado e início do século XX manteve ele acesa polêmica
pela imprensa, em Portugal e no Brasil, na defesa de seu ponto de vista.
Chegava a ser agressivo com os que defendiam o gênero masculino para
cólera
(doença),
que ele atribuía à influência francesa na linguagem
médica. Seus argumentos e diatribes encontram-se reunidos em duas
publicações: A cólera-morbo [15]
e Vícios da linguagem médica. [16]
Eis algumas passagens coléricas de seus escritos:
"A França pela boca
de alguns médicos e pela pena de vários jornalistas que se
não preocupam com questões de linguagem, atirou cá
para dentro com a beleza de o cólera; mas ainda estamos muito
a tempo de o enjeitar. Portanto, guerra a o cólera como inimigo
da língua portuguesa".
"O cólera
foi provavelmente invenção de médico pouco letrado".
"É certo que nenhum
homem de letras aceita ou defende a moderna e errônea costumeira
de o cólera".
"A cólera só
existe nos corações desumanos e o cólera nos
míseros inimigos da higiene".
"Se eu fosse desumano não
se me dava que a Providência brindasse com um ataque da cólera
os míseros e mesquinhos que se envenenaram com o cólera".
Eminentes filólogos
como Leite de Vasconcelos
[17] e médicos que
se destacaram por sua cultura linguística, como Ramiz Galvão
[18]
e Pedro Pinto [19] também optaram pelo gênero
feminino para a palavra cólera (doença).
Os léxicos da língua
portuguesa se dividem ao atribuir o gênero à palavra cólera
(doença). Dão-lhe o gênero masculino Constâncio
(1845), Eduardo de Faria (1856), Domingos Vieira (1871), Aulete (1881),
Plácido Barbosa (1917), Nascentes (1961); adotam o gênero
feminino Lacerda (1874), Laudelino Freire (1957), Silveira Bueno (1963),
Mendes de Almeida (1981), Cegalla (1996) Aurélio Ferreira (1999);
aceitam os dois gêneros Rey (1999), Houaiss (2001), Borba (2002),
e o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras
(1999).
A maior justificativa para
optar-se pelo gênero masculino seria de ordem semântica. A
distinção entre duas acepções diferentes de
uma mesma palavra pelo gênero gramatical é um fenômeno
comum, que se observa não apenas na língua portuguesa, como
em outros idiomas. Plácido Barbosa analisa detidamente o duplo gênero
da palavra cólera e cita vários outros exemplos semelhantes,
como o cabeça e a cabeça, o capital e a capital, o cura e
a cura, o guarda e a guarda, o lente e a lente, etc. Tal recurso, diz ele
"não constitui erro, senão que é um processo natural
pelo qual as línguas vivas evitam, nesses casos, a ambiguidade
e a confusão." [20]
Em espanhol encontramos
a diferenciação semântica da palavra cólera
pelo gênero gramatical. Usa-se o feminino para o sentido de irritação,
ira; e o masculino para a doença. [21]
Em francês a distinção
é feita não somente pelo gênero como pela morfologia
e acento tônico da palavra. Escreve-se colère, feminino,
para a acepção de irritação, ira; e choléra,
masculino, para designar a doença. [22]
Em italiano a diferenciação
é também completa. Grafa-se cóllera (com
duplo
l,
proparoxítono e feminino) para a acepção
de irritação, ira; e colera (com um único
l,
paroxítono
e masculino) para a doença. [23]
Parece, pois, razoável
e lógico admitir-se, também em português, o gênero
masculino para a doença, e o gênero feminino para o sentido
comum de ira, raiva, fúria.
Nas publicações
oficiais tem sido usado de preferência o gênero masculino,
como ilustra o artigo inserido na Súmula 41, publicação
da Fundação Oswaldo Cruz, de abril de 1991, no qual foi noticiada
a reativação da Comissão Nacional de Prevenção
do Cólera, em virtude do reaparecimento da doença em
carácter epidêmico, atingindo os países sul-americanos.
Em 1995 a Organização
Mundial de Saúde registrou 212.650 casos de cólera em todo
o mundo e em 1996, 123.790, dos quais 85.809 na América latina.
[24]
No Brasil, em 1996, foram confirmados 883 casos de cólera,
sendo
81 na região norte e 802 na região nordeste. [25]
Referências bibliográficas
1. HOMERO. A Ilíada.- Publ. Europa-América
Ltda., Portugal, s/d, p. 16 e 31.
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13.ed., Paris: Baillière et fils, 1873
5. GUTTMANN, W. - Medizinische terminologie, 4.ed., Berlin:
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1861), Paris: Javal et Bourdeaux,1932. t.II, p.49
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10. GARCIA DA ORTA. Colóquios dos simples e drogas
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Lisboa: mprensa Nacional, 1891, p. 255-276
11. SNOW, J. Mode of communication of cholera, 2.ed.,
London, John Churchill, 1855. Segunda edição em língua
portuguesa. São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1990, p.69
12. PARKIN, J. Suggestions respecting the cause, nature
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L. A medical bibliography,4.ed., London: Gower, 1983
13. BUENO, F.S. - Grande dicionário timológico-prosódico
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14. JUCÁ (filho), C.- Dicionário das dificuldades
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15. FIGUEIREDO, C. A cólera-morbo. Lisboa: Liv.
Clássica Ed. A.M.Teixeira, 1911
16. FIGUEIREDO, C. Vícios da linguagem médica,
2.ed., Lisboa: Liv. Clássica Ed. A.M.Teixeira, 1922, p. 127-130.
17. VASCONCELOS, J. Lições de filologia
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18. GALVÃO, B.F.R. Vocabulario etymologico, orthographico
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Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1909
19. PINTO, P.A. Dicionário de termos médicos.
8.ed. Rio de Janeiro: Ed. Científica, 1962
20. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
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21. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Dicionario de la lengua
española, 19.ed., Madrid, 1970
22. ROBERT, P. - Dictionnaire alphabétique et
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23. SPINELLI, V. & CASASANTA, M. Dizionario completo
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24. SANITÀ MARITTIMA VENEZIA. Il Colera nel mundo.
Internet: http://www.portve.interbusiness.it/sanimav/colera.html, 18 feb.1997
25. MINISTÉRIO DA SAÚDE - FUNDAÇÃO
NACIONAL DE SAÚDE.Indicadores de morbidade, 1996. Internet: http://www.ms.gov.br.
Publicado no livro Linguagem Médica, 4a. ed., Goiânia, Ed. Kelps, 2011.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br