CURAR ALGUMAS VEZES, ALIVIAR QUASE SEMPRE, CONSOLAR
SEMPRE
Este aforismo define o compromisso
do médico para com os doentes e foi consagrado como divisa da própria
medicina. É freqüentemente atribuído a Hipócrates.
[1-2] Poderia talvez ter sido inspirado na medicina hipocrática,
mas não é encontrado nos livros que integram o Corpus
hippocraticum.
Há duas traduções
das obras de Hipócrates que são clássicas: a tradução
francesa de Littré e a tradução inglesa de Jones.
No livro Peri Tékhne
(Da
Arte), Hipócrates define a medicina e seu principal objetivo da
seguinte maneira:
Na tradução
francesa de Littré: Quant á la médecine (car c'est
d'elle qu'il sagit) j'en vais faire la demonstration; et d'abord la définissant
telle que je la conçois, je dit que l'objet en est, en général,
d'écarter les souffrances des malades et diminuer la violence des
maladies, tout en s'abstenant de toucher à ceux chez qui le mal
est le plus fort; cas placé comme on doit le savoir, au-dessus des
ressources de l'art." [3]
Na tradução
inglesa de Jones: "First I will define what I conceive medicine to be.
In general terms, it is to do away with the sufferings of the sick,
to lessen the violence of their diseases and to refuse to treat those who
are overmastered by their diseases, realizing that in such cases medicina
is powerless." [4]
Com base nas versões
clássicas de Littré e de Jones o texto poderia ser assim
traduzido em português:
"Quanto à medicina,
tal como eu a concebo, penso que o seu objetivo, em termos gerais, é
o de afastar os sofrimentos do doente e diminuir a violência das
suas doenças, abstendo-se de tratar os doentes graves para os quais
a medicina não dispõe de recursos."
Vemos que a preocupação
do autor se concentra em aliviar os sofrimentos do paciente e diminuir
a gravidade das doenças. Não foi dada ênfase à
cura, que, na época de Hipócrates, como ele mesmo ensinava,
dependia primordialmente das forças da natureza (Physis).
As doenças seguiam o seu curso natural, tinham seus dias críticos
e o papel do médico era "auxiliar a natureza" para obter a cura.
Também não
há menção a "consolar"; ao contrário, o médico
deveria abster-se de tratar os doentes graves, para os quais a medicina
não dispõe de recursos.[3-4] No comentário sobre o
livro "Da Arte", Littré refere-se ao caráter desumano dessa
prática Era uma tradição da medicina grega não
acolher no Asklepeion, que era um misto de hospital e templo
consagrado a Asklepiós, deus da medicina, os doentes
terminais ou incuráveis.
É evidente que, não
sendo da época de Hipócrates, o referido aforismo é
de data posterior. O apelo ao sentimento piedoso de solidariedade humana
como missão adicional do médico nos faz crer na influência
do cristianismo. Do mesmo modo que os deuses da mitologia grega foram substituídos
por Cristo no juramento de Hipócrates, assim também o médico
deveria cuidar dos doentes sem possibilidade de cura (consolar sempre).
Nas referências mais
antigas o aforismo data do século XV e está redigido em francês:
"Guérir
quelquefois, soulager souvent, consoler toujours." Possivelmente a
frase em francês já é uma tradução do
latim medieval. Há em latim uma sentença semelhante::
"MEDICUS
QUANDOQUE SANAT, SAEPE LENIT ET SEMPER SOLATIUM EST"(O médico
às vezes cura, muitas vezes alivia e sempre é um consolo).
[5]
Do francês o aforismo
foi traduzido para outras línguas:
Em inglês: "To
cure sometimes, to relieve often, to comfort always".
Em italiano: "Guarire
qualche volta, alleviare spesso, confortare sempre".
Em espanhol: "Curar algunas
veces, aliviar frecuentemente y consolar siempre"
Em português, ao contrário
do francês e do inglês, a frase tem sido redigida com algumas
variações de palavras.
1. Curar algumas vezes,
aliviar quase sempre, consolar sempre.
2. Curar algumas vezes,
aliviar freqüentemente, consolar sempre.
3. Curar algumas vezes,
aliviar muitas vezes e consolar sempre.
4. Curar algumas vezes,
aliviar outras, consolar sempre
5. Curar algumas vezes,
aliviar freqüentemente, confortar sempre.
6. Curar as vezes, aliviar
muito freqüentemente e confortar sempre.
7. Curar algumas vezes,
aliviar outras, cuidar sempre"
8. Curar às vezes,
aliviar com frequência, consolar sempre.
9. Curar algumas vezes,
aliviar o sofrimento sempre que possível, confortar sempre.
A tradução
que mais se aproxima do original francês é a do item 3: Curar
algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre.
Em alguns artigos veiculados
pela imprensa médica e em vários textos que se encontram
na Internet seus autores atribuem equivocadamente a paternidade desse aforismo
a autores de épocas mais recentes, tais como Trudeau, Osler,
Holmes, Peabody, Alexis Carrel, Nothnagel, como nos exemplos que se seguem.
Dentre todos, Trudeau é o mais citado.
"Curar algumas vezes, aliviar
outras, cuidar sempre – uma lição secular do Dr. Edward Trudeau,
que não devemos esquecer". [6]
" A psicoterapia foge um
pouco ao mandamento obrigatório na medicina,: "Curar às vezes,
aliviar com freqüência, consolar sempre" (Francis Trudeau)[7]
Edward Linvingstone Trudeau (1848-1915) foi um médico norte-americano que se dedicou ao tratamento da tuberculose e fundou um Sanatório para tuberculosos em Saranac Lake, nos Estados Unidos. Ele foi de uma dedicação extrema aos doentes em uma época em que ainda não havia tratamento específico para esta enfermidade. Em 1918, seus ex-pacientes se quotizaram e erigiram, junto ao Sanatório, um monumento em sua memória, em cujo pedestal foi gravado o aforismo em francês. "Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours." As pessoas mal informadas julgam que ele foi o autor da frase.
Outros dão a autoria
a Osler, como neste registro:
"Com o ressurgimento dos
Cuidados Paliativos volta a fazer sentido a expressão de Osler..."Curar
às vezes, aliviar com freqüência, consolar sempre". [8].
William Osler (1849-1919)
foi o maior clínico do século XX, tendo sido um dos fundadores
da Faculdade e Hospital John Hopkins, em Baltimore, que serviram de modelo
para a implantação da moderna medicina norte-americana. Além
de docente e pesquisador, Osler destacou-se por sua preocupação
com o lado humano da medicina e suas citações do aforismo
foram atribuídas à sua própria autoria.
"Curar às vezes, aliviar
muito freqüentemente e confortar sempre - Oliver Holmes" (9).
Oliver Wendel Holmes
(1809–1894), além de médico, foi um apreciado escritor e
poeta. Realizou estudos sobre a febre puerperal e sugeriu o nome de anestesia
para a descoberta de William Thomas Morton.
"Como já dizia Francis
Peabody: to cure sometimes, to relief often and to confort always" (10).
Francis W. Peabody
(1881–1927) médico norte-americano, foi um paradigma de dedicação
aos pacientes e escreveu um trabalho que se tornou clássico sobre
a humanização da medicina, intitulado "The care of patient",
publicado
em 1927.
"However, our patients,
while demanding world-class therapies, deserve an approach summarised by
the great French surgeon Alexis Carrel: 'To cure sometimes, to relieve
often, to comfort always." Esta versão se encontra no texto de apresentação
do célebre quadro de Lukes Fildes The doctor, no site
da galeria Tate, de Londres.(11).
Alexis Carrel
(1873-1944) foi um dos mais geniais pesquisadores no campo da cirurgia
experimental, pioneiro das técnicas de cultura de tecidos, da microcirurgia
vascular, do transplante de órgãos e da cirurgia cardiaca.
Em 1912 recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Certamente
deve ter usado em algum de seus escritos o aforismo, que lhe foi atribuído.
"O médico tem que
curar algumas vezes, aliviar muitas e consolar sempre. É com base
nesse ensinamento de Nothnagel, que estudantes do curso de Medicina...
desenvolvem o Projeto de Vivência na Integração Médico
Paciente, o Provimp."[12]
O nome de Hermann Nothnagel
(1841-1905) , médico alemão que viveu de 1841 a 1905,
ficou consagrado na Nothnagel's Encyclopedia of Practical Medicine,
do
início do século XX.
Em conclusão, todas
as referências citadas são improcedentes: não se conhece
o autor da frase, nem quando a mesma foi usada pela primeira vez. O citado
aforismo aflorou naturalmente como síntese da própria medicina
e do compromisso do médico para com a humanidade sofredora.
Referências bibliográficas
1. DRUSS, R. G. - Introspections. To Comfort Always. Am
J Psychiatry 160:25-26, January 2003
2. GOLDBLOOM, D.S. - Editorial. Language and Metaphor.
Bull. Canadian Psychiatric Ass., june 2003, Toronto, Canadá.
3 HIPPOCRATE - Oeuvres complètes (tradução
E. Littré). De l'art. Paris, Javal et Bourdeaux, 1933, p.190.
4. HIPPOCRATES - The art. (trad. W.H.S. Jones). The Loeb
Classical Library, 1972, vol II, p. 193.
5. REZENDE E SILVA, A. V.- Phrases e curiosidades latinas.
5a. ed. fac-similar, Rio de Janeiro, 1955, p.402.
6. NEUBARTH, F.- Dor, quinto sinal vital. Rev. Bras.
Reumatol. 44, 71-74, 2004.
7. EDELWEISS, M.L. O cliente, a psicoterapia e o seu
contexto. Internet. Disponível em http://www.malomar.com.br/textos/texto02a.htm
Acesso em 7/12/2005.
8. NUNES, R. - O Doente Oncológico em Fase Terminal.
Internet. Disponível em http://quimioterapia.com.sapo.pt/Atitudes%20e%20comportamentos.htm
Acesso em17/12/2005.
9. SIQUEIRA, J.E. - Bioética na terminalidade
da vida. Bol. Soc. Bras. Bioética, ano 2, n. 4, out. 2000
10. JORNAL VIRTUAL "SEMANAU", Ed. n. 15. Santa Maria/P.Alegre,
2003.
11. WELLS, F. - Luke Fildes - The Doctor, 1891. Internet.
Disponível em http://www.tate.org.uk/tateetc/issue8/microtate.htm
Acesso em 26/11/2008.
12. MADEIRO, M. - Curar, aliviar, consolar sempre - Diário
do Nordeste, Fortaleza, 16/09/1998.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
31/05/2005
Atualizado em 27/11/2008