NOTAS HISTÓRICAS E FILOLÓGICAS SOBRE A PALAVRA DENGUE
A palavra dengue,
de procedência espanhola, tem pelo menos três acepções
principais na sua língua de origem. O Diccionario de la Lengua
Española da Real Academia Española coloca as três
acepções em uma única entrada, indicando tratar-se
da mesma palavra que, na sua evolução semântica, teria
adquirido sentidos diferentes.
No texto original lemos:
dengue. (De la onomat. deng, del balanceo.) m. Melindre mujeril que consiste en afectar delicadezas, males y, a veces, disgusto de lo que más se quiere o desea.// 2. Esclavina de paño, que llega hasta la mitade de la espalda, se cruza por el pecho, y las puntas se sujetan detrás del talle. Es prenda de mujer.// 3. Pat. Enfermedad febril, epidémica y contagiosa, que se manifiesta por dolores de los miembros y un exantema semejante al de la escarlatina."[1]
Em seu monumental Diccionario
Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Corominas
y Pascual dão a palavra dengue como criação
expressiva, onomatopaica, com o sentido de meneio, balanço, e discutem
o vínculo existente entre as três acepções acima
citadas. Interrogam qual das duas primeiras acepções teria
sido a primitiva e concluem por uma equivalência semântica
de ambas "puesto que el melindre es achaque mujeril e la esclavina en
cuestión es prenda de mujer, la comparación pudo hacerse
lo mismo en uno que en el otro sentido".[2]
A terceira acepção,
nome de doença, seria posterior, visto que as duas primeiras estão
documentadas no Diccionario de la Lengua Castellana,
da Real Academia Espanhola, de 1732, e a última só aparece
no século XIX. O vínculo semântico entre o nome da
doença e a primeira acepção de dengue parece
evidente pela postura e comportamento dos doentes. Schuchardt, em 1891,
defendeu este ponto de vista, afirmando que a doença foi assim chamada
em virtude da aparência dos enfermos, "sea por la tiesura que
dejan los dolores del dengue, sea porque el dengue que a veces es enfermedad
leve, fuese tachado por alguns de mera afectatión".[2]
A doença, de caráter
epidêmico, era já conhecida de longa data e recebeu, ao longo
do tempo, os mais variados nomes de cunho popular, conforme o país
ou a região considerados. Dentre eles, "febre da China", na Ásia;
"bouhou", na Oceania, "febre quebra-ossos", nos Estados Unidos; "colorado",
em colônias espanholas", "dandy fever", em colônias inglesas,
"dengue", nas Antilhas; "polca", no Rio de Janeiro; "patuléia", na
Bahia.[3][4]
As duas primeiras descrições
da doença na literatura médica se devem a David Bylon, em
1780, quem descreveu uma epidemia de dengue ocorrida em Java em 1779, e
Benjamin Rush, em 1789, que descreveu o surto epidêmico ocorrido
em Filadélfia, nos Estados Unidos, em 1780.[5]
A partir de então,
a nomenclatura médica foi acrescida de novos nomes para a doença,
tais como "febre epidêmica", "febre reumatismal", "febre epidêmica
eruptiva" "febre articular exantemática", "febre reumática
eruptiva", "escarlatina reumatismal", "artrodinia", e outras.[3][6]
As palavras e os nomes têm
o seu destino traçado por circunstâncias históricas
fortuitas. Dentre tantos nomes, dengue sobrepôs-se aos demais,
passou para o inglês e o francês e universalizou-se. Já
em 1839, foi o nome escolhido por Dickson [7] para o seu livro sobre a
história, patologia e tratamento da doença. E em 1869 foi
adotado pelo Colégio Real de Medicina de Londres.[8]
Os conhecimentos sobre a
doença só avançaram no início do século
XX. Em 1906, Bancroft [9] sugeriu tratar-se de doença transmitida
por um vetor, provavelmente o Aedes aegypti (então chamado
Stegomyia
fasciata). Em 1907, Ashburn & Craig [10] demonstraram a natureza
viral do agente etiológico e, em 1916, Cleland, na Austrália,
comprovou a transmissão do vírus pelo Aedes aegypti.
[11] Em 1931, Simmons, em estudos experimentais, identificou outro possível
transmissor, o Aedes albopictus.[12] São reconhecidos atualmente
quatro tipos de vírus, designados abreviadamente por DEN-1, DEN-2,
DEN-3 e DEN-4.
A denominação
de dengue para a doença acha-se definitivamente consagrada
de vez que foi incorporada à Nomenclatura Internacional das Doenças,
do Conselho das Organizações Internacionais de Ciências
Médicas (CIOMS) e da Organização Mundial de Saúde.[13]
A explicação
aparentemente lógica de chamar-se dengue à doença,
dada por Schuchardt e aceita por Corominas y Pascual,[2] não é
partilhada por muitos filólogos e linguistas, os quais buscam
outras fontes etimológicas, as quais, ou teriam prioridade semântica,
ou teriam produzido uma forma convergente da palavra.
O campo da etimologia é
propício a divagações baseadas em semelhanças
mórficas ou sônicas das palavras e permite dar asas à
imaginação.
Hobson-Jobson e Dalgado
julgam que dengue seria uma palavra ameríndia.[14] Como a
doença foi assinalada no Peru em 1827, a língua ameríndia
poderia ser o quichua.
Para muitos, a palavra dengue
é
de origem africana e teria sido levada para o Caribe pelos escravos. Em
quimbundo, ndenge quer dizer menino, que subentende birra, choro,
manha.[14]
Outra versão dá
a palavra dengue oriunda do swahili, língua bantu da costa
leste africana, na qual a expressão ka dinga pepo quer dizer
"cãibras de início súbito".[15] Bloch e Wartburg afirmam
que tanto a doença como o seu nome procedem de Zanzibar, ilha do
Oceano Índico, que hoje integra o território da Tanzânia.[16]
Outras hipóteses
menos prováveis foram aventadas, como deverbal de denegar
ou a origem do árabe, dániq. [2] Do espanhol a palavra
dengue
passou para o português, inicialmente na acepção de
melindre, manha, faceirice, afetação. Nesta acepção
encontra-se averbada nos dicionários de Constâncio (1845),
Faria (1854), Vieira (1873), Lacerda (1874), Aulete (1881).
Chernoviz, no seu Dicionario
de Medicina Popular refere-se à epidemia de dengue que ocorreu no
Rio de Janeiro a partir de 1846, quando a doença era chamada de
polca,
dança que se encontrava em moda na época. Identificou-a,
no entanto, corretamente, citando sua sinonímia, inclusive dengue,
nome
pelo qual era conhecida nas Antilhas.[3]
A incorporação
de dengue ao léxico da língua portuguesa, na acepção
de doença, encontra-se consignada na primeira edição
do Dicionário de Cândido de Figueiredo, de 1899.
A partir de então,
o termo passou a integrar o vocabulário médico do nosso idioma,
a exemplo do que ocorrera em inglês, francês e alemão.
Em relação
ao gênero gramatical de dengue, sabemos que as palavras terminadas
em e, em português, podem ser masculinas ou femininas. Dengue
pode
ser substantivo ou adjetivo. Na função adjetiva, os dois
gêneros são admitidos. Na função substantiva,
não há unanimidade de opinião entre os lexicógrafos.
A maioria dos léxicos
adota o gênero masculino quando dengue é usado nas
acepções de melindre feminino, afetação, faceirice,
birra de criança, manha, e o gênero feminino quando se trata
da doença, a exemplo do francês.
O "Novo Aurélio",
atualmente o mais consultado dos dicionários contemporâneos,
em sua segunda edição, prescreve o gênero feminino
para dengue, na acepção de doença, mas, ao
final do verbete, incoerentemente registra: "Dengue hemorrágico.
O
que é acompanhado de fenômenos hemorrágicos...".[17]
O editor de termos médicos
do referido dicionário, Dr. Deolindo Couto Jr., em entrevista concedida
em 1987 ao periódico Diálogo Médico,[18] manifestara
a intenção de retificar o gênero de dengue para
masculino na terceira edição, o que efetivamente ocorreu.
O Vocabulário Ortográfico
da Academia Brasileira de Letras[19] aceita os dois gêneros e Nascentes[20]
adota o gênero masculino.
Nos dicionários de
termos médicos, Plácido Barbosa [21] usa o gênero feminino;
Céu Coutinho [22] e J.L. Soares,[23] o gênero masculino, enquanto
Pedro Pinto[24] aceita os dois gêneros.
Haveria uma só justificativa
para optar-se pelo gênero feminino, que seria a diferenciação
semântica pelo gênero gramatical, já que se usa o masculino
na acepção comum de faceirice, afetação.
A tradição
médica brasileira, no entanto, é de conferir à palavra
dengue,
também
na acepção de doença, o gênero masculino, tal
como em espanhol. Eminentes professores e tropicalistas brasileiros, como
Eugênio Coutinho,[25] Otto Bier,[26] Jayme Neves,[27] Amato Neto
[28] e Ricardo Veronesi,[29] sempre usaram em seus livros "o dengue" e
não "a dengue".
Em trabalhos científicos
veiculados nos últimos anos em periódicos médicos
dos mais representativos da imprensa médica brasileira, prevalece
o uso do gênero masculino - o dengue [30-36]
O Ministério da Saúde,
que já usara o dengue em publicações anteriores,[37]
tem dado preferência ultimamente na campanha de combate ao Aedes
aegypti, ao gênero feminino, acompanhando os meios de comunicação
de massa, o que certamente poderá contribuir para incrementar o
uso do gênero feminino na literatura médica.
Pessoalmente sou favorável
à manutenção do gênero masculino.
A situação
atual do dengue é pouco animadora: 60 milhões de casos por
ano em todo o mundo, com 30.000 mortes.[38] No Brasil, a Fundação
Nacional de Saúde dá a seguinte estatística: 125.574
casos em 1995; 180.392 em 1996, e 201.628 de janeiro a agosto de 1997.[39]
Referências bibliográficas
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la lengua española, 19.ed. Madrid, 1970.
2. COROMINAS, Juan & PASCUAL, José A.: Diccionario
crítico etimológico castellano e hispánico. Madrid,
Ed. Gredos, 1984
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de medicina popular, 6.ed. Paris, 1890.
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popular no Brasil. Salvador, Itapuã, 1970, p.295.
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and Morton), 4.ed. London, Gower, 1983.
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Organização Andrei Ed., 1984.
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Aust. med. Gaz. 25:17-18, 1906.
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Experimental investigations regarding the aetiology of dengue fever, with
a general consideration regarding the disease. Phillipp. J. Sci. B., 2:93-151,
1907
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J. Aust. 2:179-184; 200-205, 1916.
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étymologique de la langue française, 7.ed. Paris, Presses
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Nova Fronteira, 1986.
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1981.
20. NASCENTES, Antenor: Dicionário da língua
portuguesa. Academia Brasileira de Letras, 1961-1967.
21. BARBOSA, Plácido: Dicionário de terminologia
médica portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
22. COUTINHO, A. Céu: Dicionário enciclopédico
de medicina, 3.ed. Lisboa, Argo Ed., 1977.
23. SOARES, José Luis. Dicionário etimológico
e circunstanciado de Biologia. São Paulo, Ed. Scipione Ltda, 1993.
24. 39. PINTO, Pedro A.: Dicionário de termos
médicos, 8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
25. . COUTINHO, Eugênio. Tratado de Clínica
das Doenças Infectuosas e Parasitárias, 4.ed., Rio de Janeiro,
1947, p. 30.
26. BIER, Otto: Bacteriologia e Imunologia, 19.ed., São
Paulo, Melhoramentos, 1978, p. 728.
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Doenças Infectuosas e Parasitárias. Rio de Janeiro, Guanabara
Koogan, 1978, p. 235-2
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39.BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. FUNASA
Internet: http://www.fns.gov.br/, 26/08/97.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
Atualizado em 10/9/2004.
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