LINGUAGEM MÉDICA
ÍON, ÂNION, CÁTION
Quando Faraday, em 1834, descobriu o fenômeno da eletrólise, teve necessidade de novos termos para designar os fatos por ele descobertos. Por sugestão do Rev. Whewell, professor da Universidade de Cambridge, criou, dentre outros, os seguintes neologismos:
a) anode,
do grego ánodos, caminho
para cima, subida (de aná, para cima + hodós, caminho);
b) cathode,
do grego káthodos, caminho para
baixo, descida (de katá, para baixo + hodós, caminho);
c) ion,
do grego ión, particípio presente do
verbo eimi, ir; significa,
portanto, o que vai, o que caminha;
d) anion, do grego aná, para cima + ión;
que se desloca para cima;
e) cation,
do grego katá para baixo + ión; que se desloca para baixo.
Faraday
comparou a direção da corrente elétrica com a trajetória do sol, denominando
anode ao polo onde
nasce a corrente, e cathode ao polo oposto para onde flui a corrente. Os átomos dotados de
carga elétrica negativa, que migram contra a corrente, foram chamados anions,
e aqueles dotados de carga elétrica positiva, de cations.[1]
Do ponto de vista científico, as
coisas ficaram muito bem definidas.
As novas palavras criadas em inglês,
por Faraday, passaram para outras línguas com as
adaptações que se fizeram necessárias. Em francês mudou-se apenas a sílaba
tônica: ion, anion, cation,
conforme a prosódia dessa língua. Em espanhol manteve-se a mesma grafia,
acentuando-se a última sílaba em anión e catión. Em italiano houve modificação para ione, anione, catione. Em português surgiram nada menos de seis
formas para ion, sete para anion e oito
para cation (íon, ion, iono, iônio, ionte, ião; ânion, aníon, anion, aniono, aniônio, anionte, anião; cátion, catíon, cation, catiom, cationo, catiônio, cationte, catião).
Não há acordo entre os linguistas e os nossos lexicógrafos demonstram indecisão,
tanto em relação à sílaba tônica, como no tocante à forma.
A forma iônio foi proposta
por Cândido de Figueiredo e a terminação ônio
é recomendada por Mendes de Almeida para todas as palavras provindas do grego e
terminadas em on.[2]
A forma iono
foi defendida por Plácido Barbosa, em lugar de ionte, que, em sua
opinião, "não se justifica por nenhuma necessidade, regra, uso ou
analogia".[3]
Contudo, encontramos adeptos da
forma ionte dentre renomados mestres, como Adolfo Coelho, Pedro Pinto,
José Inez Louro e José Lopes Baião. Este último autor
recomenda proscrever a forma íon, consagrada pelo uso, "pois em
nossa língua não há palavras terminadas em n".[4]
Na realidade, pelo menos duas são bem aceitas: hífen e hímen.
José Inez
Louro, em trabalho extenso e bem fundamentado, admite quatro soluções para as
palavras derivadas do grego com terminação em on,
a saber:
1. Derivados de substantivos neutros
da segunda declinação (tema em o), correspondendo à segunda
declinação latina (terminação em um). Tais palavras devem
simplesmente perder o n desinencial. Ex.: gânglio, filtro, metro,
léxico. Do mesmo modo deve dizer-se ísquio, íleo, epiploo.
2. Derivados de palavras gregas
pertencentes à terceira declinação (tema em consoante, nominativo em on, genitivo em onos).
Correspondem aos substantivos latinos em o (ou on), genitivo em onis,
também da terceira declinação. Neste caso convém a
terminação portuguesa ão, que corresponde ao
acusativo latino one (m). Ex.:
sabão, sifão, anfitrião.
3. Derivados de substantivos também
da terceira declinação, os quais diferem dos do grupo anterior apenas terem a
penúltima sílaba átona. Passam para o latim em o (ou on), genitivo onis.
Pertencem a este grupo os vocábulos cotilédone, autóctone, cânone.
4. Derivados de particípios verbais
empregados substantivamente. Têm o genitivo em ontos,
de que resultou ontis em latim e onte
Ion,
anion e cation se incluem no último grupo,
pois são derivados do particípio verbal ion,
genitivo em ontos, do verbo grego eimi, ir. Portanto, segundo o citado
autor, a forma correta deverá ser ionte, anionte, cationte.[5]
A forma ião,
mais utilizada em Portugal do que no Brasil, foi defendida por Rodrigo de
Sá Nogueira como solução correta para o aportuguesamento da palavra ion.[6] Todavia, a Academia das Ciências
de Lisboa, já em 1940, registrava íon, aníon, catíon com a seguinte observação: "melhor que ião, anião, catião".[7]
Estranhamente, o recente dicionário
da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001, averba três formas para
íon (ião, íon e ionte); uma
única para ânion (anião) e duas para cátion (catião e cationte).[8]
O Vocabulário Ortográfico da Academia
Brasileira de Letras consigna três formas para íon (íon, iônio, ionte),
quatro para ânion (anião, aníon, ánion, anionte)
e cinco para cátion (catião, cátion, catíon, cation e catiom), excluindo as formas aniônio
e catiônio.[9]
No dicionário Aurélio século XXI
vamos encontrar íon e ionte; ânion, anion e anionte; catião, cátion
e catiom (com m).[10] No
léxico Michaelis encontramos íon, ionte; aníon,
anionte; catião,
cátion e cationte.[11]
O dicionário Houaiss
averba ião, íon, iônio, ionte (com a
observação de que a forma ionte seria preferível, embora menos usada); anião, aníon, ânion, anionte; catião, cátion, cationte.[12]
Nos três últimos dicionários
citados, a definição semântica dos vocábulos encontra-se nas formas íon,
ânion e cátion.
As formas vernáculas, por
excelência, seriam as terminadas em ão.
Silveira Bueno, no entanto, discorda desse ponto de vista e assim se expressa
A cada dia aumentam os termos
técnicos com o final em on, que são
incorporadas à língua portuguesa sem a necessária adaptação, tais como néfron, plâncton, vírion,
elétron, nêutron, próton, mícron, etc.
Ion,
anion, cation são termos técnicos internacionais.
De ion deriva o verbo ionizar e
o substantivo ionização. De ionte teríamos iontizar
e iontização, que seriam diferentes dos
termos equivalentes em outras línguas e poderiam suscitar dúvidas aos menos
esclarecidos.
Verifica-se, na atualidade, uma
tendência em privilegiar as formas íon, ânion e cátion, que são
as únicas consignadas no Dicionário de termos técnicos em medicina e saúde,
de Luis Rey.[14]
Referências bibliográficas
1.
SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed. Baltimore, Williams ,
Wilkins, 1961, p.231.
2. ALMEIDA, N.M. - Dicionário de questões
vernáculas. São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981.
3. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia
médica portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco
Alves, 1917.
4. BAIÃO, J.L. - Através do dicionário. Belo
Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1972, p. 194
5. LOURO, J.I. - Questões de linguagem técnica e
geral. Porto, Ed. Educação Nacional, 1941, p. 166-169.
6. OLIVEIRA, J. - Medicina e gramática. Rio de
Janeiro, 1949, p. 240-242.
7. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional, 1940.
8. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA - Dicionário
da língua portuguesa contemporânea. Lisboa, Ed. Verbo, 2001.
9. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1999.
10. FERREIRA, A.B.H. - Novo dicionário da língua
portuguesa, 3.ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,
1999.
11. MICHAELIS - Moderno dicionário da língua
portuguesa. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1998.
12. HOUAISS, A., VILLAR, M.S.
– Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio
de Janeiro, Objetiva, 2001.
13. REY, L. = Dicionário de termos técnicos de
medicina e saúde. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan
S.A., 1999.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed.,
Goiânia, AB Editora e Distribuidora de Livros Ltda,
2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.