MACULO
Maculo é o nome de uma doença que grassava entre os escravos africanos no Brasil colonial e que, eventualmente, podia acometer também os indígenas e os colonizadores brancos.
A doença tem uma variada sinonímia, entre denominações populares e científicas: Popularmente era chamada de "achaque do bicho", "enfermidade do bicho", "corrupção do bicho", ou simplesmente "corrupção", "mal-do-sesso", "relaxação do sesso". Os indígenas a chamavam de Teicoaraíba, e, entre os hispanoparlantes, era conhecida por "el bicho", "mal del culo", "bicho del culo", "enfermedad del guzano". Dentre as denominações eruditas encontramos ulcus et inflammatio (Piso), inflammatio ani (Martius), Retite gangrenosa epidêmica (Manson).
Consistia em uma retite inflamatória, com afrouxamento do esfíncter externo do ânus, eliminação de muco fétido, ulcerações e prolapso do reto, além de manifestações sistêmicas como febre, cefaléia, dores no corpo, quebrantamento geral e, por vezes, sintomas neurológicos de torpor, sonolência, delírio e coma, terminando com o óbito do paciente.
Complicava-se, por vezes, com a miíase do ânus e do reto, conseqüência, certamente, da falta de higiene e do hábito de defecar na superfície do solo, em meio à vegetação, ao alcance das moscas varejeiras. Nesse caso, a doença evoluía com gangrena do reto e morte do doente. Conforme esclarece Eustáquio Duarte, "era tradicional entre os índios o processo de espremer o sumo de folhas do petume (tabaco) e de outras plantas "acres" sobre feridas e chagas em que se criavam tapurus, nome que emprestavam às larvas parasitas dos dípteros". [1]
Guilherme Piso considerava a doença como uma entidade peculiar ao Brasil: "Não sei de ninguém que tenha observado este mal em outro lugar da Terra, além do Brasil." [2]. Estava mal informado, porquanto, antes dele, Jacob Bontius havia descrito em seu livro Methodes Medendi uma doença idêntica ao maculo, na Indonésia, então possessão holandesa [1].
A propósito do livro O que é o achaque do bicho, um dos três primeiros livros escritos no Brasil, de autoria de Miguel Dias Pimenta e publicado em Lisboa em 1707, Eustáquio Duarte fez um estudo exaustivo sobre o maculo, com revisão de toda a literatura mundial existente sobre o mal, chegando à conclusão de que não se tratava de doença peculiar ao nosso país e nem de uma doença africana importada com o tráfico de escravos, como sugerira Langaard [3]. Tratava-se de uma infecção bacteriana disentérica, de ocorrência universal, que poderia ou não complicar-se de miíase do ânus e do reto [1].
A maior prevalência registrada no Brasil devia-se, sem dúvida, às condições precárias em que viviam os escravos "nos barracões de nefasta memória", onde "sucumbiram centenares de vítimas" [4].
Patrick Manson, em 1903, batizou a doença de retite gangrenosa epidêmica, denominação erudita pela qual a mesma ficou conhecida nos meios acadêmicos e ainda é citada nos livros e tratados sobre doenças infecciosas e parasitárias. Esta denominação não é a mais apropriada, de vez que a doença era endêmica e não epidêmica, e nem sempre evoluía com gangrena do reto. Manson jamais vira um caso e baseou-se nas informações de um médico de Curaçau, Dr. Ackers, que também não tinha experiência pessoal com a doença. [5]
A ocorrência do maculo foi ainda registrada entre os seringueiros da Amazônia, por Murilo Campos: "a moléstia aparece no início das águas, tanto nos seringais, como nas vilas, especialmente nas de Diamantino e Rosário". "Na região do noroeste são muito atacados os seringais de Santana, perto de Arroz Sem Sal, e os de S. Manoel de Piratininga. Não faz a moléstia distinção de raças – são atingidos tanto os pretos e caboclos como os estrangeiros."[6]
O tratamento do maculo era principalmente local, feito com clisteres, banhos e introdução no reto de pedaços de limão, supositórios preparados pela maceração de folhas de determinadas plantas, especialmente da erva-do-bicho", pimenta malagueta, pólvora, sob a forma de massas (pírolas) ou de tiras de pano, ou fios de algodão, embebidos nessas preparações (sacatrapos). Também se usavam clisteres de água de Labarraque (solução de carbonato de sódio saturada de cloro), canforada, fenicada ou creosotada. Nos seringais da Amazônia, as "pírolas eram preparadas com sabão, pólvora e pimenta."
A origem do termo maculo tem sido erroneamente interpretada como procedente do espanhol. Como na Venezuela e em outros países hispano-parlantes da América Latina, a doença é conhecida por mal de culo, Silva Lima, um dos integrantes da chamada "escola tropicalista", pioneiro nos estudos sobre esta doença no Brasil, em 1894 perfilhou esta interpretação: Referindo-se à denominação em espanhol de mal de culo, acrescenta "donde proveio, por contração, maculo" [7]
Como nos esclarece Jacques Raimundo, em sua obra O elemento afro-negro na língua portuguesa, a palavra maculo já existia na língua quimbundo (makulu), falada em Angola e Guiné, tanto no litoral, como no interior [7]
Por sua vez José Maria Bomtempo, médico da corte de D. Pedro I, relata ter sido acometido, quando residia na África, do mal "chamado na língua do Paiz – maculo , o qual corresponde a uma enfermidade semelhante e endêmica nesta cidade (Rio de Janeiro) e em toda a América, desde o Equador até a latitude de 23º C, onde tem o nome de Corrupção." [8].
É de
supor-se que tenha ocorrido exatamente o inverso: o espanhol mal del
culo é que seria uma adaptação de maculo,
dada a localização da enfermidade e a semelhança morfológica
das palavras. O dicionário etimológico de Nascentes, de 1966
[9] e os dicionários modernos já abonam a origem africana
do termo maculo.
Referências bibliográficas
1. ANDRADE, Gilberto Osório e DUARTE, Eustáquio.
In Morão, Rosa e Pimenta. Recife, Arquivo Público Estadual
de Pernambuco, 1956, p. 375-460.
2. PISO, Guilherme. História natural do Brasil
ilustrada. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1948, p. 166 e 374.
3. LANGAARD, Theodor J.H.: Dicionário de medicina
doméstica e popular, 2. ed. Rio de Janeiro, Laemmert, 1873.
4. SOARES, Antônio Joaquim de Macedo. Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa. Elucidário etimológico
crítico, vol. II, Rio de Janeiro, INL, 1955, p.3-4.
5. MANSON, Patrick. Maladies des pays chauds (trad.).
Paris. C. Naud Ed., 1904, p. 389-391
6. CAMPOS, Murilo. Notas do interior do Brasil. Arq.
Bras. Med., 1913.
7. RAIMUNDO, Jacques. O elemento afro-negro na língua
portuguesa. Rio de Janeiro. Renascença Editora, 1933, p. 138.
8. SÃO PAULO, Fernando. Linguagem médica
popular no Brasil. Salvador, Itapuã, 1970, 218-222.
9. NASCENTES, Antenor. Dicionario etimológico
resumido. Rio de Janeiro, INL, 1966.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
e-mail: jmrezende@cultura.com.br
http://www.jmrezende.com.br
17/12/2008