RAQUIDIANO, RAQUIANO, RAQUEANO
Rhákhis
e spina são as denominações dadas à
coluna vertebral, respectivamente em grego e latim. Rhákhis
encontra-se em várias passagens de Hipócrates[1] e
Galeno[2], enquanto spina foi consagrada por Celsus[3] em
sua terminologia médica latina. Nas línguas modernas empregam-se
derivados de ambas as fontes, grega e latina,
Rhákhis,
em grego, se escreve com a letra X (khi), representada
em latim por ch, razão pela qual a palavra grega passou
para o latim e para as línguas modernas como rhachis
ou
rachis.
Em português, a terminação
is
dos termos
gregos evolui normalmente para e, donde rache.
Para evitar
erro de pronúncia em nosso idioma, no qual ch soa como x,
mesmo antes da reforma ortográfica já se grafava raque
como variante de rache.[4][5][6]
Dentre os derivados de raque
incluem-se raquidiano
e
raquiano, que significam "relativo
ou pertencente à coluna vertebral" e que comumente se empregam para
designar elementos anatômicos como o líquor (líquido
cefalorraquidiano), canal (canal raquidiano), nervos (nervos
raquidianos), etc.
Raquidiano é
a adaptação ao português do adjetivo francês
rachidien,
que teria sido introduzido na terminologia médica por Capuron, em
1808.[7] Bloch e Wartburg consideram rachidien um adjetivo formado
irregularmente, "commme si le mot grec avait un radical en -id-".[8]
Apesar deste vício de origem, foi incorporado à língua
inglesa (rachidian) e às línguas neolatinas, inclusive
o português, em que se encontra dicionarizado desde 1874. [4]
Em 1909, Ramiz Galvão,
médico e grande conhecedor da língua grega, rejeitou a forma
rachidiano
(raquidiano), rotulada de cópia do francês, considerando
que o substantivo grego rhákis não faz o genitivo
em idos, e propôs a forma racheano
(raqueano).[9]
O mesmo ponto de vista foi posteriormente compartilhado por outros linguistas.
Silveira Bueno é
taxativo: "o grego rhakhis
faz o genitivo rhakheos
e não rhakhidos, donde não existe o tema grego
para tal forma raquidiano ou
rachidien
(em francês)".[10]
Mendes de Almeida condena igualmente
raquidiano
"uma vez que o genitivo
grego é -eos e não -idos".[11]
São mais tolerantes
Nascentes [12], que interpreta a consoante d como eufônica,
e Pedro Pinto[13], que aceita
raquidiano
"acoimado de espúrio,
sem razão".
A escolha entre raquidiano
e
raquiano não é fácil. Levando-se em conta as
razões etimológicas apontadas, raquiano seria preferível.
Nesta hipótese, surge uma nova questão: raqueano ou
raquiano?
Com
e
ou com i? A tendência fonética da língua
portuguesa favorece o emprego da vogal i antes do sufixo
-ano. São relativamente poucos os adjetivos que mantêm
a terminação --eano em lugar de -iano.
Assim como escrevemos deltoidiano, esofagiano, faringiano, interfalangiano,
também devemos adotar raquiano.
Por outro lado, raquidiano
corresponde
ao termo de uso corrente em outros idiomas, preenchendo o ideal de uniformidade
internacional da terminologia médica, o que é uma forte razão
para a sua adoção. Temos em francês, rachidien;
inglês, rachidian; italiano,
rachidiano; espanhol,
raquidiano.
Há outros adjetivos derivados de raque, porém são
pouco empregados: inglês,
rachial, rachidial; italiano, rachideo;
espanhol, raquídeo; português,
raquial, raquídio.
Na literatura médica
brasileira encontramos as três formas constantes do título
deste artigo: raquidiano [14], raquiano [15] e raqueano.[16]
A Nomina Anatomica,
sendo elaborada em latim, utiliza, desde a BNA (1895), spina
em lugar de rachis para designar a coluna vertebral e spinalis
para adjetivar as estruturas relacionadas com a mesma. Spina
se traduz em português por
espinha
e spinalis
por espinhal (ou espinal). Em consequência, o
adjetivo raquidiano (ou raquiano)
tem sido substituído
na nomenclatura neurológica por
espinhal (ou espinal),
como se pode verificar em textos recentes de conceituados especialistas.
Todavia, não está havendo uniformidade quanto à espinhal
ou
espinal.
No livro Neranatomia Simplificada, de Erhart[17], encontramos
"líquido cérebro-espinhal", enquanto no livro Neuroanatomia
Funcional, de Angelo Machado[18], o autor se refere ao "líquido
cerebrospinal".
A opção entre
espinhal
e espinal será discutida em outro tópico.
Referências bibliográficas
1. HIPPOCRATES - The Loeb Classical Library, vol. 3 London,
W. Heinemann Ltd., 1972, p. 279 e seg.
2. GALENO - Oeuvres anatomiques, physiologiques et médicales.
Trad. Ch. Daremberg, vol. 2. Paris, Baillière, 1854, p. 48 e seg.
3. CELSUS, A.C. - De Medicina. The Loeb Classical Library,
vol. 3. Cambridge, Harvard University Press, 1971, p. 480 e seg.
4. VIEIRA, D. - Grande dicionário português
ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
H. de Moraes, 1871-1874.
5. BARBOSA, P. - Dicionário de terminologia médica
portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1917.
6. FIGUEIREDO, C. - Vícios da linguagem médica,
2.ed. Lisboa, Liv. Clássica Ed., 1922.
7. DAUZAT, A., DUBOIS, J., MITTERRAND, H. - Nouveau dictionnaire
étymologique et historique, 3.ed. Paris, Larousse, 1964.
8. BLOCH, O., VON WARTBURG, W. - Dictionnaire étymologique
de la langue française, 7.ed. Paris, Presses Universitaires de France,
1986.
9. GALVÃO, B.F.R. - Vocabulário etymologico,
ortographico e prosodico das palavras portuguesas derivadas da língua
grega. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1909.
10. BUENO, F. S. - Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa. São Paulo, Ed. Saraiva, 1963.
11. ALMEIDA, N.M. - Dicionário de questões
vernáculas. São Paulo, Ed. "Caminho Suave" Ltda., 1981.
12. NASCENTES, A. - Dicionário etimológico
da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1932.
13. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
8. ed. Rio de Janeiro, Ed. Científica, 1962.
14. CECIN, H. A. - Proposiçäo de uma reserva
anatomofuncional, no canal raquidiano, como fator interferente na fisiopatologia
das lombalgias e lombociatalgias mecânico-degenerativas. Rev.
Assoc. Med. Bras. 43:295-310, 1997.
15. LYNCH, J.C., MORAES, G.P., SALTZ, E. - Melanoma
raquiano extradural: relato de caso Arq. Bras. Neurocir. 4:187-193
1985.
16. RASSI NETO, A, PIMENTA L.H., BOCCALETTI, V.R. -Abscesso
intra-raqueano epidural. Levantamento de 23 casos. Seara Méd.
Neurocir. 11: 221-226, 1982.
17. ERHART, E. A.: Neuranatomia simplificada, 6.ed.,
São Paulo, Roca, 1986.
18. MACHADO, A. - Neuroanatomia funcional, 2.ed., São
Paulo, Atheneu, 1993.
Publicado no livro Linguagem Médica, 3a. ed., Goiânia, AB Editora
e Distribuidora de Livros Ltda, 2004..
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
10/9/2004.